"A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

(Graciliano Ramos)



sexta-feira, 2 de julho de 2010

Culpa da bicicleta

Thais de Lima

Silenciosamente, a bicicleta invadira sua vida. Sabia que ela estava tomando conta de tudo. Ela não, elas. Agora já eram cinco. No início uma só, que ficava em um cantinho da área de serviço. Na época ainda parecia uma pessoa normal. O emprego, a casa, o marido, as roupas, tudo igualzinho de gente normal.
Mas ela ficava lá no canto, cabisbaixa. Guidão borocoxô, pneus murchos, bagageiro arriado. Sonsa, pura chantagem emocional. Não resistia e a levava para passear. Mas ela, insaciável, sempre queria mais.
Começou a fazer cara triste todo dia, uma agonia só. O jeito era evitar a área de serviço. Foi pior, passou a ouvir vozes: “Ei, psiu, Paracambi. Psiu, Paracambi é logo ali”.
Maquiavélica, ela. A bicicleta. Quando o marido, digo, ex-marido ficou aborrecido por que a mulher só queria saber de girar por aí, elas foram embora. Ela e a bicicleta. Conquistar sua liberdade, por que liberdade concedida não interessa.
Mas a bicicleta queria mais, mais bicicletas. Começaram a chegar outras. O apê de Copa ficou pequeno, seria preciso uma casa maior. No subúrbio é mais barato, e foram todas elas para um bairro afastado, em um apartamento grandão. Ardilosas.
Da área de serviço ocuparam um quarto inteiro. No trabalho questionaram sua sanidade mental: hora de mudar de emprego. A família assustava-se: filha que ia de bicicleta almoçar em Jaconé só podia estar maluca. Tudo culpa dela, da bicicleta.
Contudo algo ia errado, muito errado. Estavam rodando menos por aí: a dona andava cabisbaixa, assim meio borocoxô. Olhos murchos, cara arriada, tal qual bicicleta encostada. Aquela alma, que antes pedalava nas nuvens, ultimamente girava meio nublada.
Arquitetaram então um plano: aumentar a família. Precisariam de mais gente sobre duas rodas. Encontraram a vítima perfeita: um ciclista dentista, para juntar escovas de dente e as magrelinhas. E a dona, moça pequenina, descobriu como sentir grande. Grande, mas tão grande, de mal caber no peito.
Tudo começou numa viagem, cada qual com sua vida e seus pares. Mas durante a noite, na cabeça, era o outro que povoava o dormir. Não resistiram àquilo: foram almoçar na Cobal. E o almoço se estendeu por quatro dias e quatro noites, por que não se desgrudaram desde então. Tudo culpa dela, da bicicleta.
Fim dos quatro dias e eles revezavam as casas, coladinhos todo dia tal qual chiclete em cabelo de menina. A solução não podia ser outra: juntar as rodas de vez, e ao final de um mês, que coisa: o endereço era um só.
O quarto ficou pequeno e elas ocuparam também a varanda. A empregada passou mal quando viu tanta bicicleta junta. Nem conseguia entender de onde vinha tanta lama. A máquina de lavar roupas deu pane.
Depois de oito meses, o assunto não é outro e bicicleta virou até trabalho. Viajar? Só de bici. Tudo passou a girar em ciclos, no ritmo de pedais e quilômetros. E a dona ficou conhecida por aí como a mulher da bicicleta, a Mulher de Ciclos. Agora o casal segue bolando novas aventuras sobre duas rodas, porque ainda precisam descobrir muita coisa juntos. E pedalando, oras, o mundo gira!

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